quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Uma viagem com o comissário Botina de Goma


Dominguinho, em pé e à esquerda, ao lado de seu grupo de catira

O Botina de Goma

     Desde a primeira década do século passado a região da Capelinha, no distrito de Rio Verde, hoje Quirinópolis, destacava-se como área de criação de bovinos. Conforme relata o Dr. Pedro Ludovico Teixeira em seu livro de memórias - "havia prosperidade por lá", ao justificar porque, em 1917, o jovem médico escolhera Rio Verde, no Sudoeste Goiano, e não sua terra natal, Vila Boa, hoje Cidade de Goiás, para iniciar sua carreira profissional.

    A região de Rio Verde, da qual fazia parte a Capelinha, possuía naquela época cerca de 300 mil cabeças de gado. Era viável criar bovinos ali, melhor do que em qualquer outra região do Estado, pela proximidade com Barretos (SP), que era local de abate em frigorífico e referência na comercialização de gado de corte e de bois gordos. Por isso, a pecuária tanto se desenvolveu em Goiás, na região da divisa com Minas, no caminho para Barretos. 



       Dominguinhos era filho da região do Paredão, em Quirinópolis. Casou-se com dona Maria - a Mariínha do Butina, sua companheira inseparável do lar, das festas e da lida do dia-a-dia. Era sua parceira nas festas em que participava o seu grupo da catira. Em meados da década de 50, no século passado, o senhor Domingos Quirino da Silva, que era peão de boiadeiro conhecido como Botina de Goma, torna-se comissário boiadeiro.

       Com peão o Botina já havia viajado com vários comissários para Barretos e outras praças da ramo. Conhecia a estrada e o ofício. Desta vez, em iniciativa corajosa, combinou  com o seu amigo Juca, um dos filhos do Coronel Jacinto Honório, a levada de 1.500 bois gordos de sua propriedade, na região da Mateira, hoje Paranaiguara, para serem abatidos no frigorífico de Barretos (SP). Com capital próprio, pois já era proprietário de terras e criador de gado, o Botina  escolheu a tropa, organizou a comitiva, arrumou a  tralha e partiu para a missão.
                                                        
     Seria mais uma daquelas jornadas pelas estradas boiadeiras, até Barretos.  Foram gastos dois dias só para juntar, apartar e separar a boiada em duas talhas: uma de 800 bois e outra com 700. Os "bichos" estavam gordos e tinham que chegar em Barretos em condições de abate, por isso nada de pressa. 


     O primeiro desafio foi atravessar a ponte pênsil de São Simão, recém construída, no rio Paranaíba, por onde só passava seis bois de cada vez. Foi gasto mais de um dia de travessia, mas era melhor do que voltar ao Porto do Gouveínha, no município de Quirinópolis ou à ponte Afonso Pena, em Itumbiara,  já que não existia mais o Porto de São Jerônimo, que se situava à montante do canal de São Simão, nem o Porto Feliz, situado à jusante, lugares tradicionais de passagem de boiadas que vinham de várias partes do Sudoeste Goiano  e do  Estado do Mato Grosso.




     No segundo dia, depois de atravessar a ponte da divisa com Minas Gerais, a comitiva acelerou a marcha, em uma longa estirada, até o próximo ponto de descanso, adentrando ao Triângulo Mineiro. Na conversa dos peões, o assunto  era os gravatás, ramo espinhoso que vegetava em grandes moitas, muito comum nas capoeiras, que teriam de enfrentar dali para frente. Já sabiam que por lá muitos bois ficavam de arribada. Resgatá-los era uma tarefa difícil, por causa dos espinhos. Perdia-se muitas horas ou, às vezes, dias, a tirar bois dos gravatás para serem de novo arrebanhados.



     Todo cuidado era pouco com a boiada para não perder peso. Por isso, aproveitava-se as pastagens que existiam naquela estrada boiadeira. As dificuldades iam sendo superadas pela união dos peões e pela boa convivência que todos tinham com o patrão. Assim seguiam, por terras mineiras, lugar de muito morros e belas  campinas, como era Campo Belo (hoje Campina Verde), de onde chegariam a  Areias,  bem pertinho de Frutal, antes da travessia do Rio Grande. Após longa e cansativa jornada, estavam todos juntos, à beira do rio Grande, em  mais uma das muitas pernoites.  Então, sobrava tempo e energia para uma brincadeira.


        Conta Antonio Ribeiro de Andrade, o peão  Moranga, amigo e companheiro de jornada do comissário:  "Ele era brincalhão, tinha muita destreza e gostava de me desafiar para uma luta".  No início de uma noite, na beira do rio Grande, ele chamou o peão para uma luta.  Muito esperto, sob o olhar da peonada, o Dominguinho o jogou por terra e retirou à força suas botinas. Em seguida, jogou-as  nas águas do rio para marcar sua vantagem" Todos riram da derrota do peão, mas logo veio o troco. Enquanto o patrão descalço contava vantagem, o peão tomou suas botas, que eram bem mais valiosas que suas botinas e também as atirou no rio. Ao ser advertido, o Moranga retrucou: "brincadeira é brincadeira, prejuízo é prejuízo".  O comissário Botina deixou passar. Todos se divertiram. Havia muita harmonia entre os membros comitiva. Não tinha briga."


      Após passarem por Laranjeiras, já no Estado de São Paulo, aproximavam-se de Barretos. Haviam decorridos 29 dias. Estava chegando o fim da missão.  Nos últimos momentos da viagem, Dominguinhos confidenciava ao seu amigo que aquele era o pior momento da viagem. Conforme relatava o peão Antonio Moranga: a gente tinha amor pelo "bichos" que pareciam saber o que ia acontecer: "eu não gostava, do que via - a boiada ficava agitada, começava a berrar e era um berro triste, de quem pressentia seu destino final."









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