Tio Antônio Estevam (à dir.), em 1995, ao receber homenagem na Câmara Municipal de Quirinópolis (GO), sob aplausos do deputado federal Iturival Nascimento, do senador Lázaro Barbosa e do público ali presente.
Um pioneiro espirituoso e benfeitor
" Filho de pioneiros, desde jovem se tornou conhecido pela disposição em servir, gosto por festas, amor a viola e a catira, bem como, pela afinidade por um gole da boa cachaça... Vivia rodeado de admiradores, que se divertiam, fazendo-lhe perguntas provocadoras para prospectar respostas sábias e instantâneas, pérolas de sua imaginação crítica e fértil."
Tio Antônio era a forma carinhosa com que a população se referia a
Antônio Estevam de Oliveira, uma figura folclórica e legendária da história
de Quirinópolis, que nasceu na região do Córrego da Pedra Lisa, por volta de 1880, antes mesmo do surgir do povoado da Capelinha e viveu até o ano de 1983, quando veio a falecer, aos 103 anos. Assim, pudera participar de todas as etapas de desenvolvimento do município. Filho de pioneiros, desde
jovem se tornou conhecido pela disposição em servir, gosto por festas,
amor a viola e a catira, bem como, pela afinidade por um gole da boa caninha. Era caipira por origem, mas dono de incomparável
espirituosidade e tinha o dom de responder a tudo que lhe era
perguntado, com rapidez de raciocínio, humor e sabedoria.
Possuía um estilo próprio, goiano agauchado, com longos bigodes e traje 'sui genere': lenço atado no pescoço, um guampo a tiracolo, guaiaca na cintura, bombachas e inseparável par de botas. Andava sempre bem vestido. Por onde passava reunia admiradores com a intenção de prospectar respostas inteligentes e engraçadas, ou seja, surpresas que surgiam de sua imaginação crítica e fértil, com as quais seus fãs se divertiam. Nas festas ia para fazer o seu show particular e diferenciado. Ao som da viola e na batida de sua dança preferida, a catira, que praticava com um grupo de amigos bem treinados, ele cantava e contava seus sentimentos e suas vitórias. De espírito alerta, quando provocado, sabia, como ninguém, usar da sutileza crítica ou da irreverência deseducada, para dar respostas atrevidas, recheadas de humor. Por isso vivia rodeado de admiradores, que se divertiam, fazendo-lhe perguntas provocadoras, para prospectar respostas sábias e instantâneas, pérolas de sua imaginação crítica e fértil.
Não havia no seu tempo alguém na região que não o conhecesse. Experiente carreiro, usou as trilhas abertas pelos poucos moradores da época para chegar até Santa Rita do Paranaíba, hoje Itumbiara, ou até Uberabinha, hoje Uberlândia, para levar excedentes da agricultura praticada à época e trocar por insumos indispensáveis para a vida dos pioneiros. No retorno trazia encomendas, como querosene para a iluminação; sal, para condimentar a alimentação humana e para amansar o gado bravio, que se escondia nas matas, e diversas encomendas dos amigos. Com
suas juntas de bois curraleiros e seu carro em madeira da melhor qualidade gostava de transportar
materiais para construções de pontes e outras benfeitorias. Com sua solicitude deu grande contribuição ao desenvolvimento do município.
Tornou-se amigo do Coronel Jacinto, grande benfeitor de Quirinópolis. Juntos construíram a cadeia, casa de policiais e diversas benfeitorias públicas na preparação do distrito de Quirinópolis para sua emancipação. Em
ajuda ao seu amigo prefeito Hélio Leão disponibilizava suas juntas de bois para conduzir, sobre um couro bovino transformado em esteira, cascalho, terra, pedras para realizar aterramentos e tapar buracos na conservação da primeira rodovia aberta entre Quirinópolis e a vizinha Mateira,
hoje Paranaiguara. Estava sempre decidido a colaborar com uma causa meritória, sobretudo quando se tratava de obras de interesse da comunidade. Ao contribuir de forma significativa em favor da emancipação do município o tio Antônio se tornou, um dos principais colaboradores do coronel Jacinto, portanto uma figura de destaque, um benfeitor de Quirinópolis.
A viola, presente do Governador
O ex-governador Mauro Borges, que era um amante da catira, quando da inauguração da sede do Colégio Pedro Ludovico, ficou impressionado com aquela figura que com um grupo de amigos se exibia. Ao cumprimentá-lo, prometeu-lhe uma viola. Ao ouvir a promessa, o Tio disse-lhe em seu modo peculiar de conversar - "Quer dizer que prometer o senhor não precisava, mas como promessa é dívida se a viola não chegar eu mesmo vou buscar", provocando risos aos presentes.
Algumas "perolas" de Tio Antônio
Muitas foram as coisas divertidas ou curiosas que realmente aconteceram e que passaram a fazer parte do anedotário dos quirinopolinos. Será sempre difícil reconstitui com fidelidade as pérolas da espirituosidade do Tio Antônio Estêvam. Sem esta pretensão registro aqui alguns exemplares.
O desfrute da cadeia
Certa vez, em época de eleição, após ter tomado alguns goles de cachaça, Tio Antônio voltava para o bailão do seu PSD, quando tropeçou e caiu ao pular sobre uma tora de aroeira, que a polícia mantinha atravessada na rua, para evitar o tráfego de veículos, pois o povo, que ia chegando das fazendas, ali se concentrava. Ao se levantar, começou a discutir com os policiais ali presentes. "Quer dizer que aqui é um lugar para o povo passar. Vem senhoras, crianças e pessoas idosas, que vão tropeçar e se machucar, no dia da eleição. Quer dizer que essa peça não poderia ficar ai..." Os soldados, que não eram da cidade, evitavam o assunto. Como nestas ocasiões o Tio era atrevido, tanto falou, que acabou preso, por desacato, mesmo estando com certa razão. No outro dia, seus companheiros procuraram por ele, até que souberam de seu paradeiro. Ao chegar na cadeia, que ainda estava por inaugurar, o candidato a prefeito expressou sua surpresa ao dizer: "Tio Antônio, eu não sabia que o senhor estava aqui, porque não me avisou! O senhor é um patrimônio do município." Ao passar as mãos sobre os bigodes, respondeu: "Quer dizer que não tem com o que o senhor se preocupar. Escute: acabei de acordar, estou gozando do que fiz - a madeira desta casa veio da minha fazenda. Fui eu que doei e puxei com meus bois, com meu carro. Ajudei a construir e estou desfrutando. Não há o ditado de que tudo que a gente faz, para a gente mesmo um dia serve? Risos.
Deixa o café para outra hora
Contam que, quando chegou o Banco do Brasil a Quirinópolis, o gerente foi visitá-lo e o convidou para ser seu cliente, pois já sabia que o velho era comprador de gado, sempre tinha algum dinheiro. Então, disse-lhe: "Seu Antônio, vim aqui pra lhe dizer, que estou no Banco do Brasil para lhe servir. Faça–me uma visita. Quero fazer muitos negócios com o senhor." Ao que o tio respondeu: "Nós fazemos. Quero dizer que hoje eu não estou de jeito, para fazer negócio com o senhor, mas quando tiver, eu vou." Algum tempo depois, o tio Antonio se apertou por causa de uma certa quantia e se lembrou da promessa do gerente. Ao chegar no banco, foi direto ao assunto: "Hoje eu vim, Doutor, pra continuar aquela conversa que nós tivemos, lá em casa. Estou precisando... " O gerente vendo a sua intenção, atalhou a conversa. "Pois é Tio Antonio, como eu lhe falei, quero que o senhor abra uma continha conosco. Venha tomar um café, que eu vou lhe explicar." O Tio Antônio espirituoso entendeu e foi ao seu modo: " Quero dizer que eu agradeço, Doutor. Pelo jeito, o que senhor está querendo é o mesmo que eu estou procurando. Então, vamos deixar o café pra outra hora." Risos.
Tem gente com mais sede
Em um comício marcado para a zona rural não havia suficiente boa oferta de água de bebida. Um fila então se fez em volta de uma cisterna para o atendimento disponibilizado pelo Tio Antônio, que com seu guampo retirava o líquido do poço e servia aos sedentos. Foi aí que uma certa senhorita, que não tinha um copo para apanhar a água oferecida, ao tomar o guampo em suas mãos deu nele fortes sacudidas para lavá-lo e, com expressão de nojo no rosto, devolveu-o para nova operação de retirada da água do poço, quando foi surpreendida, pelo Tio Antônio, ao não lhe conceder nova dose do precioso líquido. Com a reação da moça, indignada, o tio disse: "Calma, Moça! Quero dizer que agora tem gente com mais sede". Risos.
A cobrança da promessa do Governador
O
tempo passava e a promessa da viola feita pelo governador Mauro Borges
não se cumpria. Aos que lhe perguntavam pelo presente do governador, ele
dizia que não estava preocupado. Até que certo dia resolveu ir à
capital, falar com o chefe. Ao chegar na periferia da cidade o motorista
perguntou: "Está gostando da vista da cidade, Tio?" Ao apontar para a
região de prédios, à distância, disse: "Quero dizer que aqui é o
cerradinho. Quero ver é aquele culturão, lá da frente."
Ao chegar ao palácio, foi logo interceptado pela guarda, que não lhe deu
permissão, para entrar. "O senhor está agendado," perguntou um assessor.
"É preciso de uma ordem para falar", explicou. O Tio Antônio, na sua
singeleza de homem da roça, disse para a guarda e aos vários curiosos
que a tudo assistiam: " Quero dizer que eu vim de longe por causa da promessa que o governador me fez. Não precisa de outra ordem,
porque nós somos homens de palavra. Falei para ele, que se demorasse em cumprir a promessa, eu vinha buscar." O ajudante de ordem então desconfiado disse que ia
falar com o seu chefe. Ao tempo em que o Tio Antônio prosseguiu, em seu
estilo espirituoso: "Quer dizer que vocês ficam aqui, que nem cachorro, a
vigiar o terreiro, para ninguém chegar perto do dono?" Risos. Foi aí que
chegou um novo assessor, para tomar o nome do visitante e levá-lo ao
governador, a quem disse que se trava de um homem com estilo de gaúcho,
com uma roupa típica do sulino e que dizia ser seu amigo de
Quirinópolis. Ao que Mauro Borges, disse: "E ele é meu amigo mesmo,
traga-o que tenho um presente para lhe entregar." Ao receber a viola
prometida, com dedicatória gravada na madeira, o Tio Antônio disse:
"Quer dizer que vim porque sabia que o senhor, como filho do Dr Pedro, era um homem
cumpridor da palavra. Estou muito satisfeito" . Amante da catira, o
governador ainda ensaiou umas batidas de pés com o tio Antonio. Ao deixar o palácio exibiu o presente aos assessores ali presentes. Na madeira estava gravado: "Ao companheiro Antonio Estevam, com a amizade do Mauro Borges". Aí ele provocou: "Então podem limpar a baba!" e arrematou na despedida - "Quer dizer que vocês não queriam, mais fui bem
recebido pelo chefe." Risos.
Esconda o bicho
Noutra oportunidade, após tomar o lotado ônibus que vinha da Mateira, havia certa demora na saída do veículo, por uma longa discussão entre o cobrador e uma senhora, que trazia nas mãos um pequeno frango dependurado. O cobrador disse que já havia avisado que era proibido carregar aves ou animais naquele veículo. A passageira não consegui entrar com seu bicho. Ao seu companheiro de viagem o Tio Antônio sapecou: "A dona não agasalhou o pinto. Quero dizer que aqui dentro muita gente conduz o seu, mas tem que estar bem agasalhado, senão dá problema." Risos.
O negócio não era tão ruim
Muitas são as histórias, que o povo conta de situações divertidas, que tinham ao centro o Tio Antônio Estêvam. Posso dar o meu testemunho.
Estava casado a pouco, quando convidei o senhor Gabriel Mangava, meu sogro, para almoçar conosco no sítio, ocasião em que lhe mostraria alguns bezerros e lhe proporia que me comprasse os mesmos. Como tinha sobra de pastagem, ele poderia deixá-los para partir o lucro, quando de sua venda, após a engorda.
Depois de lhe mostrar os bezerros, estávamos no curral, quando chegou o Tio Antônio, montado em seu cavalinho. Foi para nós uma surpresa, por causa de sua avançada idade. Ao cumprimentá-lo, disse-lhe que ficasse à vontade, enquanto terminava o negócio. Achei que ele veio também para olhar os bezerros, porque era comprador. Por ali ele ficou, até que resolvi lhe contar que pretendia vender aqueles bezerros, para meu sogro, mas estava difícil realizar o negócio, porque eu pedia 8.500,00 cruzeiros por cabeça e ele só queria me pagar 8000,00.
Então perguntei ao Tio: Este negócio não é bom, o preço do bezerro está baixo, o que o senhor acha? Ele passou a mão sobre o bigode, como era de costume e ficou calado. Voltei a insistir: pode falar tio Antônio. Ao que ele então disse: "Quero dizer, que não é do meu costume dar palpite em negócio alheio." Então expliquei: não, tio, só queremos ouvir sua opinião. Pode falar como comprador mesmo. Tio Antônio, então disse: " Você insiste, vou falar. Eu não compreendi bem, mas parece que estes bezerros são filhos do gado dele, que veio de herança. Foram criados nos pastos da sua fazenda, que veio de herança. Ele quer pagar 8.000 dos 8.500 que você pede e ainda vai deixar a mercadoria para partir lucro, não é? Então, o negócio é muito bom. O que você acha?" Risos.
Ângelo Rosa Ribeiro foi professor da EV-UFG, atual assessor técnico da SEGPLAN, ex-secretário estadual de agricultura e abastecimento e ex-secretário estadual de planejamento.