Quirinópolis sempre se destacou pela força de sua pecuária, que gerou emprego e renda para o desenvolvimento regional. Não foi só boi que de lá saiu, aos milhares, desde a época dos coronéis, para o mercado externo e interno. Também, mão-de-obra qualificada. Neste caso se insere a história de José Alves Rodrigues - o Zezão, que nasceu, neste município, em 7 de julho de 1926.
Com o progresso, as
rodovias e o transporte por caminhões empurraram as histórias dos peões boiadeiros para o
passado, deixando apenas a nostalgia de tempos outros em que homens,
bois, mulas e cavalos interagiam com a natureza exuberante. Estes personagens ao enfrentarem
dificuldades às vezes indizíveis, em viagens que duravam meses, tangiam uma boiada de mais de mil reses, desde o
coração do planalto central, até alcançarem a região Noroeste Paulista, passando pela região do Triângulo Mineiro ou pelo antigo estado do Mato Grosso.
Por isso é importante o testemunho deste personagem sobre a condução das boiadas, pelas históricas estradas boideiras do Sudoeste Goiano. Certamente, o Zezão é um dos poucos comissionários boiadeiros autênticos, ainda vivo.
Zezão morou em Qurinópolis, até aos 14 anos. Em 1941, mudou-se para Jatai, indo morar numa fazenda, onde permaneceu por 7 anos. Diante de sua vocação, começou a viajar como peão boiadeiro com o Tonicão Borges, conhecido comissário daquela cidade. Trabalhou com ele uns 10 anos, sempre viajando para São Paulo e Mato Grosso, em uma época em que havia muitas estradas boiadeiras, quase sempre mal definidas, na imensidão dos cerrados. Levava grandes boiadas, em média 1200 bois de cada vez. De Jataí a São Paulo eram necessárias 40 marchas. Tomava-se a direção do rio Aporé, que atravessava para chegar a Cassilândia (MT), depois Aparecida do Taboado, no mesmo estado, onde atravessava o rio Paraná, na balsa do Semi Rodrigues. Pelas margens deste rio, chegava-se a Andradina, no Estado de São Paulo. Outro caminho era seguir a velha rota por Quirinópolis. Neste caso, passava-se por Santo Antônio da Barra, Santa Helena, Quirinópolis e São Simão, em Goiás, de onde se chegava a Monte Alto, em Minas, para, depois de atravessar o rio Grande, chegar a Auriflama, já na região Noroeste de São Paulo.
Em 1962, Zezão mudou-se para Inhumas (GO), após fazer uma "arte" em Jataí. Como afirma, “aí teve que sair de lá.”. Ali, trabalhau numa fazenda por algum tempo. Em 1968, mudou-se para Presidente Prudente (SP). Lá, ele recebia o gado que vinha de Goiás e levava para outras fazendas daquela região. Em 1972, retornou à Goiás, para de novo morar em Inhumas. Aí, tornou-se comissário. Comprou comitiva e começou a viajar. Pegava gado no interior de Goiás e levava para o Pará ou São Paulo. Em 1975, mudou-se para o Estado do Pará para mexer com fazenda. Em 1982, retornou a Inhumas, comprou outra comitiva, outra tropa e recomeçou a sua vida de comissário boiadeiro. Nessa época era grande a concorrência dos caminhões boiadeiros.
A viagem da qual tem as melhores lembranças foi uma com destino a São Paulo, como descreve: "Foram 142 dias de viagem. Era boiada grande. Levava 10 peões - além do cozinheiro, tinha dois primeireiros, dois segundeiros, dois chaveeiros e dois culatreiros. Todas as viagens eram boas, mas esta do Alfredo Gibran, não esqueço. Levei 1.723 bois, entreguei 1.722. Só lá no Taboado (MS), que um boi quebrou a perna. Foram 106 marchas. Nunca vi um trem bom daquele jeito. Durante o dia eu levava ela cortada. A comitiva era uma só. Soltava uma parcela na frente, ela comia o dia inteiro... Só dormia junto, no curral de corda" Ao concluir disse: "Seu Gilbran ficou tão admirado que me deu uma mula de presente, ...que já morreu". Viagem ruim ele fez também, como resume: "Um dia, numa viagem, dei um tiro num caboclo, que estava numa camionete. Depois disso a polícia me chamou, fui montado na mula até a delegacia, expliquei tudinho e a delegada me liberou. Era uma camionete cheia de gente. O sujeito me ofendeu, a camionete saiu e eu atirei e acertei justo nele, mas não moreu. Eu só viajava armado. Naquele tempo podia.”
Depois disso, Zezão viajou até 2005, quando parou, aposentado. Certamente é um dos mais velhos comissários de boiada ainda vivo. Em 2007, ainda podia ser encontrado na periferia de Jussara (GO). Estava com 81 anos completos. Apesar da idade, mostrava-se perspicaz e brincalhão. Mantinha o bom humor e cuidava de uma chácara próxima ao bairro em que morava.
A história que este blog ora registra, bem representa a saga de muitos outros comissários, que desde o início do século passado, com seus peões boiadeiros e sua tropas sempre bem treinadas, enfrentaram todo tipo de perigo, em longas jornadas, sertões afora, por solitárias estradas boiadeiras, conduzindo a mais importante das mercadorias daqueles tempos, as boiadas, e dando suas contribuições para o desenvolvimento do Sudoeste Goiano e de Goiás.
Expressões regionais usadas nos textos:
Comissário
da boiada: responsável pelo transporte da boiada, que a recebe na origem e entrega no destino. Em geral, contratava os peões e possuía tropa própria (mulas,
burros, égua madrinha).
Ponteiro: o que vai na frente da boiada, puxando o gado com o berrante.
Premereiros: os que vão nos flancos dianteiros da boiada.
Chaveieiros: os que vão nos flancos traseiros da boiada.
Culateiro: o que vai por último, na culatra, tocando o gado e cuidando para que nenhuma rês se perca ou fique de arribada.
O Comissário e a Comitiva
As
comitivas eram formadas por grupos de peões de boiadeiro e suas
montarias, geralmente mulas ou burros, embora também fossem usados
cavalos, que faziam o transporte das boiadas pelas estradas de terra,
chamadas de “estradões”, de uma fazenda à outra ou da invernada
para o matadouro, percorrendo grandes distâncias, durante dias a fio, que
eles chamavam de “marchas”, antes do advento dos caminhões-gaiola e das
estradas pavimentadas.
Esse
fenômeno sócio-econômico e cultural ocorreu na região compreendida pelo
norte do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás,
praticamente extinguindo-se no Estado de São Paulo na década de
oitenta do século vinte,
valendo notar que a última boiada conduzida para abate na cidade de
Barretos foi no ano de 1.986, pelo comissário Wilson Pimentel.
Considerando a grande abrangência dessa atividade no tempo e no espaço, é
importante salientar que a terminologia empregada, bem como os usos e
costumes dos boiadeiros, podiam variar.
O
comissário era o dono da comitiva.
O ponteiro era um peão experiente e conhecedor das estradas,
que ia à frente tocando o berrante, nos momentos apropriados, para atrair,
estimular a marcha ou acalmar o gado e dar sinais para os demais
peões. Os rebatedores eram os peões que cercavam o gado, impedindo
que se espalhassem. Os peões da culatra iam na retaguarda da
boiada. Os peões da “culatra manca” ficavam para trás tocando os
bois que tinham problemas para acompanhar a marcha da boiada, por cansaço,
ferimento ou doença. O cozinheiro saía mais cedo que os demais
integrantes da comitiva, conduzindo os burros
cargueiros com suas bruacas, nas quais levava os mantimentos e tralhas de
cozinha, até encontrar um rio em cuja margem pudesse preparar a refeição,
ou seja, “queimar o alho”. Conforme destacado acima, a
terminologia podia variar de região para região.
A
comida era constituída, basicamente, de arroz de carreteiro, feijão gordo,
paçoca de carne feita no pilão, e carne assada
no “folhão” (chapa), podendo variar, conforme as
circunstâncias, de região para região ou de comitiva para comitiva,
de modo que não havia um cardápio único para todas.
O
berrante é uma buzina
feita de chifres de boi unidos entre si por
anéis de couro, metal ou chifre mesmo, e era usado pelos ponteiros para
atrair, estimular ou acalmar o gado e dar sinais
aos demais peões da comitiva. Ele emite sons, que podem ser graves ou
agudos, dependendo do toque, a partir das vibrações do ar feitas pelos
lábios do berranteiro em contato com o bocal mais estreito do instrumento.
Esse bocal varia de acordo com a forma dos lábios,
podendo ser mais raso ou mais fundo.
São
vários os tipos de toque do berrante, que se diferenciam de acordo com a
situação. No concurso de berrante realizado no setor da “Queima do Alho”
da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, são exigidos dos concorrentes
os seguintes toques: 1º – saída ou solta: toque
sereno destinado a despertar a boiada pela manhã; 2º – estradão:
toque que reanima a boiada na estrada, é repicado, semelhante ao
som do soldado marchando; 3º – rebatedouro: toque de aviso
de perigo, semelhante ao toque de clarim; 4º – queima do alho:
aviso de que o almoço está pronto; 5º – floreio: toque livre,
podendo ser uma música.
O
peão de boiadeiro, integrando a sua comitiva, percorria léguas e mais
léguas pelo sertão, durante dias e até meses, tangendo o gado no lombo de
mulas, vivendo toda a sorte de aventuras no estradão, ora enfrentando
situações de perigo, como quando a boiada estourava ou tinha que cruzar um
rio caudaloso, ora vivendo romances com as mocinhas nas vilas por onde
passava, ora se divertindo com os companheiros à noite nos pontos de
pouso, onde tocavam viola e dançavam o catira.
O peão de boiadeiro por onde passava
despertava a paixão das moças, a admiração dos jovens que queriam
tornar-se um deles e o respeito dos demais homens, tal como os cavaleiros
andantes da Idade Média. Garbosos em seus trajes típicos, com chapéu de
aba larga, lenço no pescoço, guaiaca, bombachas, botas de cano alto
e chilenas tinindo a cada passo. Suas mulas eram arreadas com esmero, a
tralha cheia de argolas de metal reluzente (alpaca).
Na garupa, além da capa “Ideal” no porta-capa de vaqueta, cheio de franjas
e “margaridas”, pendia da anca direita o “cipó” (laço) de couro de veado
mateiro.
Pena
que o progresso tenha decretado o fim do chamado “transporte elegante das
boiadas”, restando dos peões de boiadeiro apenas as lembranças e as
saudades...
Transcrevo aqui os versos finais da moda de
viola "Saudosa Vida de Peão", de autoria de Peão Carreiro e Tião Carreiro,
interpretada pela dupla Tião Carreiro e Pardinho:
"... Ao deixar o estradão
Para o meu coração
Foi um forte veneno
Minha rede macia
Que nela eu dormia
Até no sereno
Expressos boiadeiros
Deixou os pioneiros
Com a vida arrasada
Acabou-se o berrante
O transporte elegante
De uma boiada "
Transporto para cá, igualmente, os derradeiros versos da moda de viola
"Ponteiro de Boiada", de autoria de Joaquim Moreira da Silva, gravada pela
dupla "Carreiro e Carreirinho":
"... O
transporte de boiada
Para
nós velho peão
Não era
só por prazer
Era o
nosso ganha-pão
Com o
tempo, infelizmente,
Veio os
grande caminhão
Asfaltaram nossa estrada
Deixando toda a peonada
Maldizendo a evolução."
Não é à toa que as mais belas modas de viola,
legítimas manifestações do rico universo cultural do homem do campo, que
nos fazem chorar de emoção, têm como tema a vida do peão de boiadeiro.
Disso são exemplos as modas: “Boi Soberano”, “Ponteiro de Boiada”, “O
Menino da Porteira”, “Boi Fumaça”, “Os Três Boiadeiros”, “A Volta do
Boiadeiro”, “Saudosa Vida de Peão”, “Berrante de Ouro”, “Mágoa de
Boiadeiro”, “Velho Peão”, “Travessia do Araguaia”, “Boiadeiro Errante”,
além de outras tantas que nem daria para enumerar neste espaço exígüo.
O maior movimento das comitivas passou a
ser em direção à cidade paulista de Barretos, a partir do ano de 1.913,
quando se instalou ali o primeiro frigorífico do
Brasil. A Festa
do Peão de Boiadeiro de Barretos foi criada no ano de 1.956, inspirada nas
comitivas e na figura do peão de boiadeiro.
Aguinaldo
José de Góes
Comissário