sábado, 3 de janeiro de 2015

Contos do Chico Preto

Os contos do Chico Preto

A região das Sete Lagoas na época do desbravamento era constituída por cerrados e cerradões. Estes ocorriam nas partes de terras altas ou espigões. Nas baixadas, isto é, nas beiras dos rios, riachos e córregos haviam áreas de mata atlântica, que eram muito densas. Nas lagoas e nos varjões a vegetação permanecia baixa. Era nas proximidades destes locais que famílias de pioneiros construíam suas moradias. 

A mata fechada estimulava a criatividade dos habitantes do lugar. Muitas narrativas foram assim criadas,  mas a maioria das criações populares tinha origem em fatos verdadeiros. Por exemplo, havia no repertório da região casos de assombrações, ataques de onças pintadas, relatos de fenômenos naturais e outras coisas.




Onças pintadas na região Quirinópolis

Por volta da década de 40, no século passado, dois compadres, moradores das Sete Lagoas, resolveram pescar no rio dos Bois. Um deles montava uma égua nova muito bonita, que recebia os últimos repasses para a lida com o gado. Saíram depois do almoço e após umas três horas de viagem, desde as imediações do córrego do Mosquito, chegaram a casa de uns amigos, que moravam entre uma lagoa e um capão de mato, na beira do rio, perto da barra do córrego do Lajeado.

  Depois de tomar um café e trocar uma prosa, na companhia dos amigos entraram na mata, pela margem direita do rio, para o local onde deveriam pescar. Amarraram seus animais, debaixo de duas grandes aroeiras, numa clareira da mata, ao lado de uma lagoa que avançava para esgotar-se numa curva do rio, meio quilometro abaixo. 

Os fazendeiros dali perdiam gado atacado por onças e a prova estava nas moitas da beira do rio, onde eles viam restos de esqueletos de gado devorado pelas feras. Como já anoitecia, acenderam ali uma fogueira que, conforme o conhecimento dos moradores, servia para espantar as onças, pois elas costumavam aparecer. Então, caminharam para o barranco do rio, para uma ceva, debaixo de uma gameleira, que era lugar de pegar muitas caranhas.

 Quando resolveram voltar, encontraram a fogueira apagada, os cavalos muito agitados e não encontraram a égua, cujo cabresto estava amarrado na árvore. Assustados, pegaram as armas e com a ajuda do clarão da lua seguiram a certidão no capim nativo da beira da lagoa, que seguia ao lado de seu escoadouro e ia em direção ao rio. Seguiram a pista, até que perderam-na  nas sombras das árvores ribeirinhas. Resolveram voltar para a casa dos amigos para dormir. 

No outro dia, ao amanhecer retomaram às batidas e encontraram logo abaixo a égua morta, com o pescoço muito ferido e o sangue, ainda fresco, esparramado pelo chão. Por todo lado havia enormes rastros e parecia que a fera não estava sozinha e ainda estava por ali. O bicho, após refestelar-se no sangue da sua vítima, desapareceu na mata. Não deu chance para ser caçada. Segundo os compadres e os moradores do lugar, a onça era pintada e das grandes, como havia por aquelas bandas.


A desforra da  onça ferida com tiro

         Noutra ocasião, dois caçadores que moravam nas vizinhanças da fazenda Sete Lagoas iam em direção ao rio São Francisco, quando, em uma estrada no meio da mata ali existente, depararam com uma onça pintada, deitada no galho de uma grande árvore, à beira da estrada.

           A fera acuada pelos dois cães que os acompanhavam permaneceu ali, de pé, meio arrepiada, como que preparada para fugir ou atacar. Armado com uma boa espingarda, um dos caçadores resolveu atirar, mas houve uma indecisão, quando o companheiro alertou que não podia errar o tiro, por que o bicho vinha para cima do atirador. Mesmo assim resolveu atirar.

           Como temia seu colega, a onça caiu e veio em direção aos mesmos para alcançar com um tapa a cabeça do atirador. O golpe foi tão violento, que cortou com suas unhas a artéria de pescoço do imprudente atirador, arrancando todo o couro cabeludo do lado atingido, deixando a descoberto um de seus olhos na órbita craniana. Sob grande desespero, o parceiro atirou para matar a onça, mas não pode socorrer o amigo que viu desfalecer ali mesmo, em profusa hemorragia.


A estiagem que  secou o rio dos Bois

Segundo contavam os moradores mais antigos, em tempos passados, vários eventos de secas afligiram o município de Quirinópolis. Em 1963, a falta de chuvas deixou boa parte dos córregos da região das Sete Lagoas secos. Houve muitas dificuldades para os agricultores, com perdas totais de suas lavouras e relativa falta de aguadas para as criações de gado. Nesta época, vários cruzeiros foram erguidos nas nascentes dos córregos, locais para onde as famílias dos moradores se deslocavam em novenas para  rezarem o terço, pedindo a Deus que mandasse a chuva, para salvar o gado e as plantações.

Chico Preto não era muito supersticioso,  mas como se fosse, dizia que não choveu bem em 63, porque pela prova dos nove, o número 6 somado ao 3  são 9, e nove é fora,  na prova - é nada.

 Nos relatos dos moradores mais antigos, já houveram secas que fizeram secar todos os córregos, obrigando os criadores a levar o gado à longas distâncias para as poucas aguadas que restaram. Em uma desta secas, ocorrida depois da Revolução de 24, o senhor Benedito Rosa, proprietário do maior rebanho da região, dividia um olho d’agua e uma pequena poça por ele formada em suas terras, numa das nascentes do córrego Grande, a pouca distância da serra do Paredão, com vários criadores de gado, que para ali se dirigiam. Nas imediações deste bebedouro se concentravam as criações de toda a região.

 Entre os que para ali se deslocaram estavam os filhos da Dona Josina Rosa - o Chico Preto e seus irmãos, a zelar pelo gado da família. Pela regra estabelecida, um criador dava água a seu gado e o levava para algum lugar ali perto para que outro pudesse ter acesso à aguada e assim iam alternando, até que as chuvas voltassem. Bem abaixo deste bebedouro, no córrego do Brejão, havia outra aguada. 

 Fora daí, só no rio dos Bois. Todavia, segundo contavam os moradores, nesta e em outras ocasiões, teriam havido secas tão fortes que aquele rio chegou a ficar em poças, correndo aqui e acolá. Em suas margens o brejo se transformava em  atoleiros  e em torrões rachados pela seca.

Tromba d’água ou tornado aconteceu  em Quirinópolis?

Ainda era solteiro quando o Chico Preto foi visitar seu tio Jovino Rosa, na beira do rio dos Bois. Uma violenta tempestade o fez interromper a viagem. Procurou abrigo na casa de um amigo, próximo de uma lagoa, a beira do caminho.

 A tempestade surgiu com negras e altas nuvens que se formaram de repente. Então, começou a ventar. Era um vento muito rápido e dele surgiu um grande redemoinho que avançou sobre as águas da lagoa. 

Passada a tempestade, o Chico continuou a viagem.  Pelo caminho havia árvores caídas, galhos quebrados e folhas por todo o chão, num rastro de destruição deixado pela ventania que ali se estabeleceu. Mas, o que mais chamou a sua atenção foi a presença de muitos peixes mortos, alguns ainda vivos, fora da lagoa e em pleno cerradão. 

Para todos que contava este caso,  dizia ter presenciado uma tromba d'agua.  De fato, a tempestade sobre a lagoa desenhou no céu uma imagem semelhante a um funil ou talvez  a uma tromba de elefante erguida.  Ali,  entre a nuvem negra e a lagoa, ela  foi se distanciando e se desfez depois de alguns minutos, quando a chuva ficou mais mansa. Por certo, foi aquele fenômeno natural que espalhou os peixes pelo mato, à montante da lagoa. 

Para as pessoas amigas o senhor Francisco contava o que viu e  dizia que nunca entendeu direito o que ali se passou. A tempestade foi presenciada por vários moradores, mas poucos acreditavam na história dos peixes fora da lagoa. Por isso, parou de falar nesse assunto, porque sempre era motivo de risos. Mas, muito depois, ao ver imagens de tornados, teve a impressão de  que foi aquilo que ocorreu sobre a lagoa. Será ?


A assombração do resfriado da beira da estrada

               Ainda menino,  sua mãe Dona Josina pediu ao Francisco, como o chamava, que fosse ao seu compadre João Barbosa, pai do Denos Barbosa, o Tocozinho,  buscar um remédio para uma de suas irmãs. 

                Pelo caminho tinha que passar por uma longa e tortuosa estrada pelo meio de matas fechadas, em terras do senhor Benedito Rosa. Na ida, já no final da tarde, tudo deu certo. Apressou a marcha do cavalo para na volta não passar no início a noite pelo resfriado, que era uma área coberta de pedras e vegetação baixa, como se fosse um varjão, bem no meio da mata, onde se dizia haver assombrações. Mas, não adiantou.

              Quando chegou no lugar assombrado já era noite. Aí, percebeu algo diferente; "parece que  senti um vento no mato e logo veio  um abafamento no peito e um aperto na garganta. Pelo jeito ia aparecer mesmo a tal assombração. Com os arrepios do corpo senti que o cabelo da minha nuca levantou. Uma friagem tomou conta das minhas costas. O cavalo focou agitado  e parecia que havia um barulho na mata ao lado."  

             Chico apertou as esporas no cavalo para fugir depressa, mas teve que parar de repente, diante de uma porteira. "Naquele instante o meu chapéu ia caindo, acudi com uma das mãos, mas um clarão apareceu do meu lado, a iluminar a estrada e a mata em volta, inclusive a porteira, que tinha que abrir. Com o coração disparado e com medo, abri e fechei a porteira e sai dela em disparada pela estrada afora para deixar a assombração para trás. Mas, quanto mais corria, mais a luz brilhava e já estava muito desesperado. De novo tive que esbarrar o cavalo, pois se aproximava de outra porteira. Levei a mão para firmar o chapéu, quando, desta vez, esbarrei numa coisa... Pronto, a luz apagou e piscou de repente.  Era um grande vaga-lume, que estava pousado na copa de meu chapéu." O coração do Chico  acalmou um pouco, mas o medo não passava de tudo, contou. 

         Continuou correndo, mas para chegar  em casa e contar a todos o que aconteceu. Dona Josina  cobrou a entrega dos remédios, mas, o Chico não conseguia ouvir e falar direito. Todo mundo ria. O barulho foi grande..



Desistiu do Jeep DKV

          Por volta de 1960, convencido pelo seu amigo Oscarino Martins da Silva, o Calino, como era conhecido, um primo rico que sempre apresentava novidades que trazia das cidades distantes, Chico Preto resolveu comprar dele um “jeep” bonito, capota de aço, que segundo ele tinha muitas vantagens, como uma larga proteção de aço sob o motor, uma distribuição alta, composta de três platinados, que evitava a entrada de água, como explicou.

         As qualidades do carro pareciam se confirmar, mas com o passar do tempo, começou a desconfiar e descobrir seus defeitos. Então, planejou testar  o carro. Marcou uma viagem para o rio dos Bois, em um dia chuvoso. Pelo caminho tinha que passar à vau pelo Corguinho, que na chuva juntava tanta água, que virava um verdadeiro mar.

    De cá daquele aguão pensou: é hora de experimentar o DKW.  Engatou a segunda marcha, com o Oscarino ensinou e acelerou. Tudo ia muito bem, até que no lugar mais fundo a água entrou pelas portas do veículo e foi vruu...pu...pu...pu.  Pronto, o carro apagou. Teve que arregaçar as calças e carregar seu filho que era seu companheiro de viagem. Depois voltou ao carro e aos poucos o levou para fora d’agua, ao aplicar seguidas partidas, com marcha forte. Decepcionado, deixou o DKV por ali, na beira do córrego, por vários dias, até que conseguiu um mecânico que entendia seu funcionamento para regular seus três platinados e acertar o seu ponto. 

          Depois disso, um grande  susto. Tinha que ir até Quirinópolis para atender a um chamado do delegado da polícia civil, que veio em missão especial para apurar fatos ocorridos em conflitos entre famílias que resultaram em mortes, na cidade.

        Diante da delegacia, parou o DKV.  Terminado o depoimento,  o delegado e a polícia ali presentes se mostravam muito tensos, diante dos fatos que estavam apurando. Ao sair, o Chico  entrou sem pressa em seu veículo. Mas, já desconfiado rodou a  chave da partida.  Pronto, disparou-se um estampido como um tiro de arma de fogo de grosso calibre. A polícia saiu de arma em punho para ver o que estava acontecendo: calma gente, é a partida desta m.. deste carro! 

A distribuição do DKV não tinha ficado bem regulada, o que provocava forte escape de ar, sob pressão.  Tudo explicado, voltou para a fazenda e foi direto encontrar o amigo Calino. Folou: vim de devolver, não quero mais este carro.  O Oscarino perguntou o que tinha acontecido e riram muito daquelas  situações. No final, o Chico devolveu o carro na troca por uma "pick-up" Willis  novinha, que possuiu, com muito gosto, por muitos anos.



A assombração da ponte

              Os casos de assombrações eram sempre contados por todos os moradores da época. Em um deles, figurou o jovem conhecido como Zeu, que se dizia muito corajoso. Andava sempre à noite, contrariando os conselhos dos mais velhos. Certa vez, ele chegou ao anoitecer na casa sede da fazenda, não encontrando os amigos como haviam antes combinado. Decidiu partir, contrariando Dona Josina que pedia para esperar os meninos e  repetia ser perigoso andar na escuridão. O jovem não deu importância e desafiou: Dona Josina, a lua está clara, eu não tenho medo de nada, sabe?

              O caminho passava por uma capoeira e depois de certa distância havia uma ponte sobre o córrego Grande, antes dela, uma porteira. Sobre a ponte, haviam frondosas árvores que faziam sombra em seu leito. Ao aproximar-se da porteira, o cavalo do Zeu ficou agitado e refugou. O cavaleiro tentou controlar a situação, mas viu que sobre a ponte havia mesmo um clarão, uma coisa que o surpreendeu e notou um barulho do movimentar dos galhos das árvores  ao seu redor. Aí, foi um susto sem precedente: era uma assombração, pensou e paralisado, quase sem fôlego, ia caindo do cavalo. Apavorado, tentou voltar, com medo de ser agarrado pela assombração, mas no lugar havia um atoleiro. Sem força, com o solavanco da virada do cavalo, o jovem caiu no barro, virou lama só. O cavalo era muito manso, por isso o Zeu ainda conseguiu se levantar, montar e sair correndo, sem parar e sem olhar para traz.

            Ao chegar na sede da fazenda, com medo da perseguição, tentou o atalho e meteu seu cavalo em um espaço da cerca formado pelo afastamento das lascas de aroeira fincadas, no pátio, em frente a casa. Na tentativa de passar, o cavalo ficou preso entre as lascas. Zeu pulou fora e correu desesperado a gritar pela Dona Josina, que truxe a lamparina e veio para recebê-lo. Então, com a voz trêmula foi logo falando: Dona Josina, a senhora nem sabe o que aconteceu. Ao que Dona Josina, vendo seu estado e despistando perguntou: O que aconteceu, Zeu? Ele, mentindo respondeu, ainda trêmulo: "a senhora nem pode imaginar - a alma da Dona Sianinha...sabe,  apareceu para eu lá na ponte. Sabe, quando ela apareceu, eu a requeri, e então ela me pediu: procure a Dona Josina, pra vocês rezarem um pai nosso, três ave-marias em minha intenção”. 

Aí, apareceu a turma de seus amigos. A Luca, uma das protagonistas da brincadeira perguntou: “Você viu alma de quem?” "Da Dona Sianinha", respondeu sem pestanejar o Zeu.  Então, o Chico chegou e  perguntou: “Cadê seu cavalo, Zeu? E essa roupa suja, parece que você caiu num atoleiro!” 

Muito sem graça, o compadre Zeu  resolveu contar parte da história: “O cavalo está ali de fora...” "Então, vamos buscá-lo para tirar a arreata", disse o Chico. Desconfiado o Zeu insistiu  - "Foi a Dona Sianinha mesmo que eu vi lá.". 

Ao ver o cavalo encalacrado  ninguém aguentou mais, caíram todos na risada. Como o Zeu podia apelar devido a armação, seus amigos desistiram do assunto da ponte. Foram jantar e mudaram de conversa. O zeu ficou desconfiado da trapaça, mas daquele dia em diante,  pelo sim pelo não, resolveu obedecer aos conselhos da Dona Josina, ao concordar que andar por aquelas bandas à noite era mesmo perigoso.



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