terça-feira, 8 de novembro de 2011

Zezão - um comissário boiadeiro valentão




Quirinópolis sempre se destacou pela força de sua pecuária, que gerou emprego e renda para o desenvolvimento regional. Não foi só boi que de lá saiu, aos milhares, desde a época dos coronéis, para o mercado externo e interno. Também, mão-de-obra qualificada. Neste caso se insere a história de  José Alves Rodrigues - o Zezão, que nasceu, neste município, em 7 de julho de 1926. 

Com o progresso, as rodovias e o transporte por caminhões empurraram as histórias dos peões boiadeiros para o passado, deixando apenas a nostalgia de tempos outros em que homens, bois, mulas e cavalos interagiam com a natureza exuberante. Estes personagens ao enfrentarem dificuldades às vezes indizíveis, em viagens que duravam meses, tangiam uma boiada de mais de mil reses, desde o coração do planalto central, até alcançarem a região Noroeste Paulista, passando pela região do Triângulo Mineiro ou pelo antigo estado do Mato Grosso. 

Por isso é importante o testemunho deste personagem sobre a condução das boiadas, pelas históricas estradas boideiras do Sudoeste Goiano. Certamente, o Zezão é um dos poucos comissionários boiadeiros autênticos, ainda vivo.


Zezão morou em Qurinópolis, até aos 14 anos. Em 1941,  mudou-se para Jatai, indo morar numa fazenda, onde permaneceu por 7 anos.  Diante de sua vocação, começou a viajar como peão boiadeiro  com o Tonicão Borges, conhecido comissário daquela cidade.  Trabalhou com ele uns 10 anos, sempre viajando para São Paulo e Mato Grosso, em uma época em que havia muitas estradas boiadeiras, quase sempre mal definidas, na imensidão dos cerrados. Levava grandes boiadas, em média 1200 bois de cada vez. De Jataí a São Paulo eram necessárias 40 marchas. Tomava-se a direção do rio Aporé, que atravessava para chegar a Cassilândia (MT), depois Aparecida do Taboado, no mesmo estado, onde atravessava o rio Paraná, na balsa do Semi Rodrigues. Pelas margens deste rio, chegava-se a Andradina, no Estado de São Paulo. Outro caminho era seguir a velha rota por Quirinópolis. Neste caso, passava-se  por Santo Antônio da Barra, Santa Helena, Quirinópolis e São Simão, em Goiás, de onde se chegava a Monte Alto, em Minas, para, depois de atravessar o rio Grande, chegar a Auriflama, já na região Noroeste de São Paulo.

Em 1962, Zezão mudou-se para Inhumas (GO), após fazer uma "arte" em Jataí. Como afirma, “aí teve que sair de lá.”. Ali, trabalhau numa fazenda por algum tempo. Em 1968, mudou-se para Presidente Prudente (SP). Lá, ele recebia o gado que vinha de Goiás e levava para outras fazendas daquela região. Em 1972, retornou à Goiás, para de novo morar em Inhumas.  Aí, tornou-se comissário. Comprou comitiva e começou a viajar. Pegava gado no interior de Goiás e levava para o Pará ou São Paulo. Em 1975, mudou-se para o Estado do Pará para mexer com fazenda. Em 1982, retornou a Inhumas, comprou outra comitiva, outra tropa e recomeçou a sua vida de comissário boiadeiro. Nessa época era grande a concorrência dos caminhões boiadeiros.
A viagem da qual tem as melhores lembranças foi uma com destino a São Paulo, como descreve:  "Foram 142 dias de viagem. Era boiada grande. Levava 10 peões - além do cozinheiro, tinha dois primeireiros, dois segundeiros, dois chaveeiros e dois culatreiros. Todas as viagens eram boas, mas esta do Alfredo Gibran, não esqueço. Levei 1.723 bois, entreguei 1.722. Só lá no Taboado (MS), que um boi quebrou a perna. Foram 106 marchas. Nunca vi um trem bom daquele jeito. Durante o dia eu levava ela cortada. A comitiva era uma só. Soltava uma parcela na frente, ela comia o dia inteiro... Só dormia junto, no curral de corda" Ao concluir disse: "Seu Gilbran ficou tão admirado que me deu uma mula de presente, ...que já morreu". Viagem ruim ele fez também, como resume: "Um dia, numa viagem,  dei um tiro num caboclo, que estava numa camionete. Depois disso a polícia me chamou, fui montado na  mula até a delegacia, expliquei tudinho e a delegada me liberou. Era uma camionete cheia de gente. O sujeito me ofendeu, a camionete saiu e eu atirei e acertei justo nele, mas não moreu. Eu só viajava armado. Naquele tempo podia.”


Depois disso, Zezão viajou até 2005, quando parou, aposentado. Certamente é um dos mais velhos comissários de boiada ainda vivo. Em 2007, ainda podia ser encontrado na periferia de Jussara (GO). Estava com 81 anos completos. Apesar da idade, mostrava-se perspicaz e brincalhão. Mantinha o bom humor e cuidava de uma chácara próxima ao bairro em que morava.


A história que este blog ora registra, bem representa a saga de muitos outros comissários, que desde o início do século passado, com seus peões boiadeiros e sua tropas sempre bem treinadas, enfrentaram todo tipo de perigo, em longas jornadas, sertões afora, por  solitárias estradas boiadeiras, conduzindo a mais importante das mercadorias daqueles tempos, as boiadas, e dando suas contribuições para o desenvolvimento do Sudoeste Goiano e de Goiás.

Expressões regionais usadas nos textos:
 
Comissário da boiada: responsável pelo transporte da boiada, que a recebe na origem e entrega no destino. Em geral, contratava  os peões e possuía tropa própria (mulas, burros, égua madrinha).
Ponteiro: o que vai na frente da boiada, puxando o gado com o berrante.
Premereiros: os que vão nos flancos dianteiros da boiada.
Chaveieiros: os que vão nos flancos traseiros da boiada.
Culateiro: o que vai por último, na culatra, tocando o gado e cuidando para que nenhuma rês se perca ou fique de arribada.
 
Texto baseado em entrevista publicada no site www.fotomemoria.com.br.

O Comissário e a Comitiva


 

As comitivas eram formadas por grupos de peões de boiadeiro e suas montarias, geralmente mulas ou burros, embora também fossem usados cavalos, que faziam o transporte das boiadas pelas estradas de terra, chamadas de “estradões”, de uma fazenda à outra ou da invernada para o matadouro, percorrendo grandes distâncias, durante dias a fio, que eles chamavam de “marchas”, antes do advento dos caminhões-gaiola e das estradas pavimentadas.

Esse fenômeno sócio-econômico e cultural ocorreu na região compreendida pelo norte do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, praticamente extinguindo-se no Estado de São Paulo na década de oitenta do século vinte, valendo notar que a última boiada conduzida para abate na cidade de Barretos foi no ano de 1.986, pelo comissário Wilson Pimentel.

Considerando a grande abrangência dessa atividade no tempo e no espaço, é importante salientar que a terminologia empregada, bem como os usos e costumes dos boiadeiros, podiam variar.

O comissário era o dono da comitiva. O ponteiro era um peão experiente e conhecedor das estradas, que ia à frente tocando o berrante, nos momentos apropriados, para atrair, estimular a marcha ou acalmar o gado e dar sinais para os demais peões. Os rebatedores eram os peões que cercavam o gado, impedindo que se espalhassem. Os peões da culatra iam na retaguarda da boiada. Os peões da “culatra manca” ficavam para trás tocando os bois que tinham problemas para acompanhar a marcha da boiada, por cansaço, ferimento ou doença. O cozinheiro saía mais cedo que os demais integrantes da comitiva, conduzindo os burros cargueiros com suas bruacas, nas quais levava os mantimentos e tralhas de cozinha, até encontrar um rio em cuja margem pudesse preparar a refeição, ou seja, “queimar o alho”. Conforme destacado acima, a terminologia podia variar de região para região.

A comida era constituída, basicamente, de arroz de carreteiro, feijão gordo, paçoca de carne feita no pilão, e carne assada no “folhão” (chapa), podendo variar, conforme as circunstâncias, de região para região ou de comitiva para comitiva, de modo que não havia um cardápio único para todas.

O berrante é uma buzina feita de chifres de boi unidos entre si por anéis de couro, metal ou chifre mesmo, e era usado pelos ponteiros para atrair, estimular ou acalmar o gado e dar sinais aos demais peões da comitiva. Ele emite sons, que podem ser graves ou agudos, dependendo do toque, a partir das vibrações do ar feitas pelos lábios do berranteiro em contato com o bocal mais estreito do instrumento. Esse bocal varia de acordo com a forma dos lábios, podendo ser mais raso ou mais fundo.

São vários os tipos de toque do berrante, que se diferenciam de acordo com a situação. No concurso de berrante realizado no setor da “Queima do Alho” da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, são exigidos dos concorrentes os seguintes toques: 1º – saída ou solta: toque sereno destinado a despertar a boiada pela manhã; 2º – estradão: toque que reanima a boiada na estrada, é repicado, semelhante ao som do soldado marchando; 3º – rebatedouro: toque de aviso de perigo, semelhante ao toque de clarim; 4º – queima do alho: aviso de que o almoço está pronto; 5º – floreio: toque livre, podendo ser uma música.

O peão de boiadeiro, integrando a sua comitiva, percorria léguas e mais léguas pelo sertão, durante dias e até meses, tangendo o gado no lombo de mulas, vivendo toda a sorte de aventuras no estradão, ora enfrentando situações de perigo, como quando a boiada estourava ou tinha que cruzar um rio caudaloso, ora vivendo romances com as mocinhas nas vilas por onde passava, ora se divertindo com os companheiros à noite nos pontos de pouso, onde tocavam viola e dançavam o catira.

O peão de boiadeiro por onde passava despertava a paixão das moças, a admiração dos jovens que queriam tornar-se um deles e o respeito dos demais homens, tal como os cavaleiros andantes da Idade Média. Garbosos em seus trajes típicos, com chapéu de aba larga, lenço no pescoço, guaiaca, bombachas, botas de cano alto e chilenas tinindo a cada passo. Suas mulas eram arreadas com esmero, a tralha cheia de argolas de metal reluzente (alpaca). Na garupa, além da capa “Ideal” no porta-capa de vaqueta, cheio de franjas e “margaridas”, pendia da anca direita o “cipó” (laço) de couro de veado mateiro.

Pena que o progresso tenha decretado o fim do chamado “transporte elegante das boiadas”, restando dos peões de boiadeiro apenas as lembranças e as saudades...

Transcrevo aqui os versos finais da moda de viola "Saudosa Vida de Peão", de autoria de Peão Carreiro e Tião Carreiro, interpretada pela dupla Tião Carreiro e Pardinho:

"... Ao deixar o estradão

Para o meu coração

Foi um forte veneno

Minha rede macia

Que nela eu dormia

Até no sereno

Expressos boiadeiros

Deixou os pioneiros

Com a vida arrasada

Acabou-se o berrante

O transporte elegante

De uma boiada "



Transporto para cá, igualmente, os derradeiros versos da moda de viola "Ponteiro de Boiada", de autoria de Joaquim Moreira da Silva, gravada pela dupla "Carreiro e Carreirinho":



"... O transporte de boiada

Para nós velho peão

Não era só por prazer

Era o nosso ganha-pão

Com o tempo, infelizmente,

Veio os grande caminhão

Asfaltaram nossa estrada

Deixando toda a peonada

Maldizendo a evolução."



Não é à toa que as mais belas modas de viola, legítimas manifestações do rico universo cultural do homem do campo, que nos fazem chorar de emoção, têm como tema a vida do peão de boiadeiro. Disso são exemplos as modas: “Boi Soberano”, “Ponteiro de Boiada”, “O Menino da Porteira”, “Boi Fumaça”, “Os Três Boiadeiros”, “A Volta do Boiadeiro”, “Saudosa Vida de Peão”, “Berrante de Ouro”, “Mágoa de Boiadeiro”, “Velho Peão”, “Travessia do Araguaia”, “Boiadeiro Errante”, além de outras tantas que nem daria para enumerar neste espaço exígüo.

O maior movimento das comitivas passou a ser em direção à cidade paulista de Barretos, a partir do ano de 1.913, quando se instalou ali o primeiro frigorífico do Brasil. A Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos foi criada no ano de 1.956, inspirada nas comitivas e na figura do peão de boiadeiro.


 Aguinaldo José de Góes

Comissário


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