quarta-feira, 29 de junho de 2016

Memórias do Chico Preto




Clarões

 Os contos do Chico Preto

A região das Sete Lagoas, na época do desbravamento do município de Quirinópolis, era toda coberta por cerrados e cerradões nas partes altas também chamadas de  espigões e por áreas de mata atlântica nas baixadas, isto é, nas beiras dos córregos, riachos e rios. Nos espaços ocupados por lagoas e varjões a vegetação permanecia baixa. Era nas proximidades destes locais que muitas famílias construíam suas casas de morada.

A mata fechada estimulava a criatividade dos seus habitantes, mas a maioria das criações populares tinha origem em fatos verdadeiros. Por exemplo, havia no repertório da região casos de assombrações, ataques de onças pintadas, relatos de fenômenos naturais e outras coisas, como contava  o seu Chico Preto.
 

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Onças pelas bandas do Rio dos Bois

Por volta da década de 20, no século passado, dois compadres,  moradores das Sete Lagoas, resolveram pescar no rio dos Bois.  Um deles era peão de boiadeiro e montava  uma  égua muito bonita, que recebia os últimos repasses para a lida com o gado. Depois de viajarem por mais de 2 horas, desde as imediações do córrego do Mosquito,  chegaram a casa de uns amigos, que residiam entre  uma lagoa e um capão de mato  na beira do rio. Depois de tomar um café e trocar uma prosa juntaram-se aos amigos e desceram na mata, pela margem direita do rio,  para o local onde iniciariam a pesca. Amarraram seus  animais, debaixo de duas grandes aroeiras, numa clareira do mato, ao lado da lagoa que avançava  para esgotar-se em um lugar rio abaixo. Como já anoitecia, acenderam ali uma fogueira para espantar a onça, pois segundo os moradores, era na boca da noite, que de vez em quando, elas costumavam aparecer.

Depois, caminharam para o barranco do rio, para uma ceva, debaixo de uma gameleira, que era lugar de pegar muita caranha.  Quando resolveram voltar encontraram a fogueira apagada, os cavalos muito agitados e não encontraram a égua.  O seu cabresto estava amarrado na árvore. Mesmo assustados, os corajosos pescadores,  pegaram as armas  e com a ajuda do clarão da lua seguiram a certidão  no capim nativo  da beira da lagoa, em direção ao rio, para um ponto um pouco abaixo de onde pescavam. Como perto do rio havia a mata ribeirinha, perderam a batida da onça nas sombras das árvores. Voltaram para  a casa dos amigos para dormir.

No romper do dia seguinte, para não deixar a bicha sumir, voltaram às batidas e, então, encontraram a égua morta, com o pescoço muito ferido e o sangue, ainda fresco, esparramado pelo chão. Por todo lado haviam rastros e parecia que a fera ainda estava por ali e, pelas diferenças nos rastros, não estava sozinha.  A onça após refestelar-se no sangue da sua vítima desapareceu na mata ribeirinha. Segundo os  compadres e os moradores do lugar, a bicha era pintada e das grandes, como havia por aquelas  bandas.

Contos do Chico Preto



Onça pelas bandas do Rio São Francisco


           Noutra ocasião, dois caçadores que moravam nas terras do senhor Benedito Rosa iam em direção ao rio São Francisco, quando em uma estrada no meio da mata ali existente depararam com uma onça pintada deitada no galho de uma grande árvore a beira da estrada. Acuada pelos dois cães que os acompanhavam a fera permanecia ali, agora de pé, como que preparada para fugir ou atacar. Armado com uma boa espingarda um dos caçadores resolveu atirar, mas houve uma indecisão, quando seu companheiro alertou que não podia errar o tiro que a fera ferida podia ser perigosa, que vinha para cima do atirador, se alvejada em área não mortal. Mesmo assim o caçador resolveu atirar. Mas como temia seu colega, o bicho  assustado caiu e  veio em direção aos mesmos, para alcançar com uma tapa a cabeça do atirador. O golpe foi tão violento, que cortou com suas unhas a artéria de seu pescoço e arrancou todo o couro cabeludo daquele lado, deixando a descoberto um de seus olhos na órbita craniana. Sob grande desespero, o parceiro atirou e matou a onça, mas não pode socorrer o amigo que viu desfalecer ali mesmo, em profusa hemorragia.
               
                Conto de Chico de Preto




 Uma grande seca no Rio dos Bois

Contam os moradores mais antigos, que no início do século passado, várias secas  afligiram o município de Quirinópolis. Houveram muitas dificuldades para os agricultores, com perdas totais de suas lavouras e falta de aguadas para as criações de gado. Nesta época, vários cruzeiros foram erguidos nas nascentes dos córregos para onde os moradores se deslocavam em novenas ou para rezar o terço, pedindo a Deus a chuva, para salvar gado e plantações.

        Segundo relatos, houve uma seca tão forte na região que fez  secar todos os córregos, obrigando os criadores a levar o gado para as poucas aguadas que restaram. Na seca ocorrida por volta dos  anos 30, o senhor Benedito Rosa, proprietário do maior rebanho bovino da região, dividia com vários criadores de gado, que para ali se dirigiam, uma pequena poça suprida por um olho d'agua, em suas terras, numa das nascentes  do Córrego Grande, a poucos metros da serra do Paredão. 

  Nas imediações do bebedouro se concentravam as criações  de sua família e de alguns  amigos. Entre os rebanhos estava o da, Dona Josina, minha mãe,  o qual tinha que vigiar para não sumir gado no mato. Havia uma combinação para o uso da aguada: o  gado que acabava de beber era levada para algum lugar ali perto, para que outro pudesse ter acesso à aguada e assim iam alternando, até que as chuvas voltassem.

             Bem distante deste bebedouro, no Córrego do Brejão, havia outra aguada permanente.  Fora daí, só no Rio dos Bois. Mas, segundo contavam os moradores, nesta e em outras ocasiões,  as secas eram tão fortes que a terra de brejo de suas margens ficavam rachadas, em perigosos atoleiros,  e rio chegava a ficar em poças, correndo aqui e acolá.

                Contos  do Chico Preto


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A tromba d'água com tempestade na lagoa

 Chico Preto foi visitar seu tio Jovino Rosa, na beira do rio dos Bois. Uma violenta tempestade o fez interromper a viagem. Fazia  muito calor, por isso procurou abrigo na casa de um amigo, que morava próximo  de uma lagoa a beira do caminho. Ele percebeu que nuvens negras e altas  se formavam  e de repente começou a ventar. Era um vento violento. Das nuvens surgiu um grande redemoinho que avançou para as bandas da lagoa. A chuva veio forte e demorada.

Passada a tempestade continuou sua viagem. Agora fazia frio e pelo caminho havia árvores caídas, galhos quebrados e folhas espalhadas pelo chão, num rastro de destruição deixado pela ventania que ali se estabeleceu. Mas o que mais chamou a sua atenção foi a presença de muitos peixes vivos e mortos bem distantes  da lagoa.

 Para todos que contava este caso ele dizia ter presenciado uma tromba d'agua, porque de fato caiu muita água com a tempestade, que formou um redemoinho que fez aparecer uma imagem entre as nuvens e  a lagoa  semelhante a uma tromba de elefante, que foi se distanciando,  e só se desfez depois de alguns minutos, quando a chuva ficou mais mansa.

Tinha certeza que foi aquele grande redemoinho  que espalhou os peixes pelo mato, acima da lagoa. Para as pessoas contava o que viu, dizia que nunca pode entender direito o que ali se passou. A tempestade foi presenciada por vários moradores, mas poucos acreditavam na história dos peixes fora da lagoa. Ele parou de falar nesse assunto, porque era sempre motivo de piadas e risos. Mas, hoje, ao ver na televisão imagens de ciclones, diz que aquilo é  muito parecido com o que que viu sobre a lagoa.

Conto do Chico Preto, por Ângelo Rosa


A assombração do resfriado

               Dona Josina pediu ao filho Chico Preto, ainda menino, que fosse ao seu compadre João Barbosa buscar um remédio para uma crise de dor que atormentava uma de suas irmãs.

              Pelo caminho tinha que passar por uma longa e tortuosa estrada pelo meio de matas fechadas, em terras do senhor Benedito Rosa. Na ida, no final da tarde, tudo deu certo. Apressou a marcha do cavalo para na volta não ter que passar a noite por um resfriado, uma área coberta de pedras e vegetação baixa, como se fosse um varjão, bem no meio da mata, onde se dizia  ver assombrações na boca da noite. Mas, não adiantou.

           Quando ia chegar naquele lugar já estava escuro. Sentiu um abafamento no peito e na garganta, uns arrepios apareceram na nuca, uma friagem tomou conta da sua espinha, o cavalo se agitou e parecia que havia um barulho de vento na mata ao lado. Pelo jeito ia aparecer a assombração mesmo. Apertou as esporas no cavalo, que já estava bem embalado, quando teve que parar de repente, diante de uma porteira. Naquele instante o seu chapéu ia caindo, acudiu, mas no mesmo momento um clarão apareceu do seu lado, a iluminar a estrada e a mata em volta, inclusive a porteira, que ia abrir.

            Com o coração disparado e muito medo,o Chico  abriu e fechou a porteira e saiu dela em desesperada carreira pela estrada afora para deixar o  assombração para trás. Mas, quanto mais corria, mais a luz brilhava e já estava desesperado. De novo teve que esbarrar o cavalo, que se aproximava de outra porteira. Levou a mão para firmar o chapéu, quando derrubou uma coisa... Pronto, a luz apagou. Era um grande vaga-lume, que estava ali pousado. Quando caiu no chão, a assombração saiu voando.

        O seu coração acalmou um pouco, mas o medo não passou. Demorou chegar em casa. Ainda assustado, contou o que aconteceu. Mas, nem conseguia falar direito, porque todo mundo tinha um pergunta a fazer e ninguém parava de rir.

                Conto do Chico Preto, por Ângelo Rosa



Os transtornos causados pelo  DKV-VEMAG

                Por volta de 1960, convencido pelo seu amigo Oscarino Martins da Silva, o Calino, como era conhecido, um primo rico que sempre apresentava novidades que trazia das cidades distantes, Chico Preto resolveu comprar dele um "jeep" bonito, capota de aço, que segundo ele tinha muitas vantagens, como uma larga proteção de aço sob o motor, uma distribuição alta, composta de três platinados, que evitava a entrada de água, como me explicou. As qualidades do carro pareciam se confirmar, mas com o passar do tempo viu que a coisa não era bem assim. Então, planejou testar de forma definitiva o carro, indo até o rio dos Bois em um dia chuvoso. Pelo caminho tinha que passar à vau pelo Corguinho, que na chuva juntava tanta água, que virava um verdadeiro mar. De cá daquele aguão pensou: é hora de experimentar o DKW. Engatou a segunda marcha, como ensinou o Oscarino e acelerou. Tudo ia muito bem, até que no lugar mais fundo a água entrou pelas portas do veículo e vruu...pu...pu, pronto,  o carro apagou. Teve que arregaçar as calças e carregar seu filho que era seu companheiro de viagem. Depois voltou ao carro e aos poucos o levou para fora d'agua ao aplicar seguidas partidas, com marcha forte. Decepcionado deixou o DKV  por ali,  na beira do córrego, por vários dias, até que  conseguiu um bom mecânico, para regular seus três platinados e acertar o seu ponto.

                Depois  disso, tieve que ir até Quirinópolis, para atender a um chamado do delegado da polícia civil que veio em missão especial apurar fatos ocorridos em conflito entre famílias que resultaram em mortes, na cidade. Diante da delegacia, parou o DKV. Terminado o depoimento, o delegado e a polícia ali presentes confirmaram que estavam tensos e assustados diante dos fatos, que estavam apurando. Ao sair, entrou sem pressa em seu veículo e deu partida. Pronto, disparou-se um estampido, como um tiro de arma de grosso calibre. A distribuição do DKV não tinha ficado bem regulada, o que provocava forte escape de ar, sob pressão.  A polícia saiu de arma em punho para ver o que estava acontecendo: calma gente, é a partida deste carro! Tudo explicado,  voltou para a fazenda e foi direto encontrar o Calino. Chega, não quero este carro. O Oscarino perguntou por que e riram muito dos acontecidos. No final o Chico devolveu  o carro e recebeu em troca uma camioneta novinha, de marca conhecida, que  possuiu, com muito gosto, por anos.

                Conto do Chico Preto, por Ângelo Rosa

A assombração da ponte

                Os casos de assombrações eram sempre contados por todos os moradores da época. Em um deles figurou o compadre Ziu, que se dizia muito corajoso. Andava sempre à noite, contrariando os conselhos de Dona Josina, que era considerada a matriarca da grande família da região. Certa vez os filhos da conselheira  combinaram de aprontar com o compadre. Ele chegou ao anoitecer na casa sede da fazenda, mas não encontrou a turma que sempre ali estava. Decidiu partir contrariando as recomendações  de Dona Josina que repetia ser perigoso andar na escuridão por ali. O compadre ouviu, mas não  deu importância. E desafiou: "nada disso, dona Josina, a lua está clara  e eu não tenho medo de nada, sabe? A senhora não precisa se preocupar". Pouco a frente havia uma ponte sobre o córrego Grande, antes dela, uma porteira. Sobre a ponte havia frondosas árvores que faziam denso sombreamento em seu leito. Foi ali que um dos protagonistas da aventura ficou com um lençol branco envolto sobre o corpo. Ao aproximar-se da porteira o cavalo do compadre ficou agitado e refugou. O cavaleiro tentou controlar  a situação, mas  viu que sobre a ponte havia um clarão branco e notou um barulho do movimentar da galha ao lado do clarão. O compadre muito assustado pensou  que a coisa podia vir para o seu lado. Tentou virar  o seu cavalo para traz e  sair na carreira, mas no lugar havia um atoladouro. Com o solavanco do cavalo para sair do barro, o compadre caiu na lama. Virou barro só. Ao chegar na sede da fazendaz, com medo da perseguição da assombração, tentou atalhar o caminho e meteu seu  cavalo em um espaço entre as lascas de aroeira fincadas da cerca do pátio em frente a casa. Mas, para sua infelicidade, o cavalo ficou preso entre as lascas. Ele pulou fora e correu a gritar pela Dona Josina, que veio para recebê-lo. Então, com a voz trêmula foi logo falando: Dona Josina, eu bem que devia ter seguido seus conselhos. A senhora nem sabe o que aconteceu. O que foi que aconteceu, perguntou Dona Josina. Ao que respondeu o visitante: "a senhora nem pode imaginar.  A alma da dona Sianinha veio me procurar. Sabe, quando ela apareceu, eu a requeri, e então ela me disse: procura a dona Josina para rezar um pai nosso, três ave-marias e fazer uma novena em minha intenção". Aí, chegou a turma... "Você viu alma de quem?... Deixa de ser mentiroso Compadre, você não viu alma de ninguém. Porque está tremendo, que aconteceu?"  Perguntou uma das irmãs aventureiras.  "Cadê seu cavalo, compadre?" insistiu. Então ele resolveu contar a verdade: "está ali de fora, preso na cerca..." "Então, vamos buscá-lo para desarrear, disse o Chico. Ao ver o que aconteceu ninguém aguentou, caíram todos na risada. O Chico continuou a conversa: "Compadre, vamos desencravar o seu cavalo primeiro, depois desarreá-lo para você  explicar direito esse assunto". Nesse momento o compadre reclamou: "vocês não precisavam fazer isso comigo". Mas, ninguém parava de rir. "Vamos jantar, Compadre. Ninguém aqui jantou  nesta casa, te esperando", convidou Dona Josina. Mais calmo o compadre lamentou: "vocês não tem jeito mesmo". Passado aquele momento, pela amizade, todos insistiram para que o compadre pousasse, para colocar as conversas em dia. Daquele dia em diante o compadre resolveu obedecer aos conselhos da Dona Josina, ao concordar que andar por aquelas bandas à noite era realmente assustador.

                Conto do Chico Preto, por Ângelo Rosa

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